quarta-feira, 8 de julho de 2009

A crônica dos monólogos bilíngües


Vem o grande literato, com seu carrão importado, pela larga e movimentada avenida. Súbito, fecha o sinal. Da calçada, o esfarrapado mendigo o enxerga.
- Carrão bunitu, todo excrementado, dotô indinherado cum certeza. Num vai mi dexá sem um trocadim, quem sabe inté uma bulacha que o fio largô.
Parado no cruzamento, o grande escritor, dramaturgo, ensaísta, jornalista e crítico literário percebe a figura andrajosa caminhando em sua direção:
- Esse é um cidadão de bom gosto. Sabe se vestir de acordo com o clima de nosso país. Ternos, gravatas, coletes... Que tortura, nesse calor! Esse indivíduo, ao contrário, domina a arte do bem trajar: sem camisa (claro, ele pode, está com o corpo de um maratonista, nem uma gordurinha sobrando). E olha as calças, têm várias aberturas para a circulação de ar! Idéia genial de algum grande estilista. E as sandálias? Uma de cada cor. Que estilo!
- Baum dia, seu dotô, disculpa di incomodá o sinhô...
-Não incomoda, concidadão, a bem da verdade, concedo-lhe congratulações pela indumentária!
O mendigo gaguejou:
- Pela minha cara?
- Seu trajar, ajustadíssimo a essa rotunda soalheira. Vejo que sua tez tem um tom trigueiro que deixaria minha consorte rubra de inveja.
O mendigo animou-se, pensando consigo: “Esse dotô é estranjero, num fala bem nossa linga”. “Mió ainda, os gringo é mais mom aberta”.
- O sinhô num sabe, num ganhei nada hoji, poca peça pa vendê, e baxô o pressu do aliminu...
O literato pensou rápido: “Vender”...O preço do alumínio... Nosso asceta aqui é do ramo de vendas. E voltando-se ao andarilho:
- Seu gerente devia instruí-lo a usar “corretagem” ou “consultoria” e evitar o termo “vender”. Um recurso semântico que exerce forte apelo coercitivo sobre o interlocutor. E sua dicção é truncada, embora me soe audível. Evite, mancebo, os tais vícios de linguagem inerentes a determinado tipo de atividade, que alguns profissionais acabam incorporando ao léxico de sua fala cotidiana. As empresas deveriam possuir tutores aptos a orientar melhor seus corretores. Quanta falta de visão!
O pobre diabo não ousou fazer qualquer comentário. O literato prosseguiu, sorridente:
- Então, varão, opera no ramo da metalurgia? Os negócios vão mal?
Por que não muda de ramo? Corretagem de imóveis, por exemplo?
- Ah, seu dotô, acorrentá os móvis pa eu num dá não. Percisa as ferramenta. Perfiro continuá na recicrage, ninguém da impregu pa homi que nem eu.
O literato sorri. O rapaz está se referindo a seu curriculum vitae. “Perfiro”! Que pronúncia peculiar para “perfil”... “Recicrage”, na certa são exemplos desses termos importados e mal pronunciados que os profissionais de marketing utilizam em profusão. Brasileiro tem preguiça de traduzir vocábulos e expressões estrangeiras e mais preguiça ainda de aprender a pronúncia correta. Acaba inventando um dialeto novo. Não é de se estranhar que este jovem não tem conseguido efetuar uma venda. Como convencer o comprador com tão pouco domínio sobre a língua? Regionalismos, má dicção, estrangeirismos...
O mendigo deslocou ligeiramente um piolho de sua morada, e arriscou:
- Intão, sinhô, será que da pa mi resovê um pobrema? To desdi manhã sem ponhá nada na boca... O dotô tem alguma coisa pa ajudá eu?
O literato pensou consigo: “Ponhar” provavelmente ele quis dizer “pomar”. Uma provável referência a suas origens interioranas. Sabia que era do interior! “Pobrema”! Bem, há indivíduos na TV que cometem esses atropelos... Mas “ajudar eu”, é um pavoroso desvio sintático. Um homem tão simpático, com um gosto refinado para se vestir, não será difícil resolver essas suas pequenas deficiências. Do porta-luvas retirou um grosso compêndio: ESTILO E TÉCNICA DO BEM FALAR. Obra genial de seu amigo Professor Cornélio Paganno. “É tudo que um bom profissional de vendas precisa para aperfeiçoar sua prosa”.
- Aqui está, meu amigo. Ponha o conteúdo disto em sua boca. Far-lhe-á muito bem.
Disse isso, aproveitou o sinal verde, avançou com sua máquina possante. Satisfeito com a boa ação.


Sentado na beira da calçada, o mendigo pensa que no país daquele homem as pessoas comem umas coisas muito estranhas. “Perfiria mais uma linguissa frita, uma coixinha... Mais mió qui nada!” Pensou isso, dobrou mais uma página, a de número 11, pôs de uma vez na boca, e mastigou lentamente.
- Com um cafezim dicia mió...
Moral da história:
Quando a palestrante no oratório da sarjeta é a fome, nem mil versos parnasianos superam a poesia concreta de um ovo colorido, no mais naturalista dos botequins.

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