quinta-feira, 30 de julho de 2009

O gato preto - Edgar Alan Poe


Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

sábado, 11 de julho de 2009

Dor


Eram três da manhã quando olhou para o relógio. A testa estava molhada e sentia um frio umido em seu colchão, havia suado frio novamente. Levantou e foi até a cozinha. Sua cabeça pesava nos ombros, parecia que seu cérebro iria romper a sua caixa craniana e, numa explosão cinematográfica, tingir a sala com seus miolos. As mãos estavam inchadas e o pé se arrastava pelo frio azulejo da cozinha. O bebedor de barro ostentava-se como um troféu ao canto, do lado da pia. O relógio da sala gritava, ou melhor urrava tic tacs alucinantes, sua cabeça doia ainda mais, sentia a garganta seca e os olhos arderem. Finalmente consegue o copo com água, mas está tão pesado e dificil de ser erguido à boca. Em goles inclementes e refrescantes acalmou seu organismo sedento. Sorvia a água e a sentia percorrer seus poros, repondo seu gasto noturno. A cabeça doia menos quando foi para a sala – onde diabos está o controle ? – Baixou a cabeça para procura-lo em baixo do sofá... ah antes não tivesse feito isso... Franziu a testa. Uma dor lacinante perfurou suas temporas, expremendo sua mente. A cabeça estava pesada e seus joelhos dobrados não conseguiam obedecer sua vontade de levantar. A mão direita agarrava-se com força no couro velho e rachado do sofá e os dedos cravavam na espuma exposta. Com muita dificuldade finalmente levantou – droga! Preciso de um analgésico! – Caminhando com os braços erguidos e tateando o caminho como um zumbi dos filmes de Romero, alcançou o banheiro. A dor lascinante obrigava-o a manter os olhos semifechados. Seu rosto enrruga-se com a dor. Na testa, suas linhas de expressão formavam vales e colinas que brilhavam com o suor de seu rosto. Com sua mão tateando, finalmente consegue abrir o espelho, mas devido à violência de seu ato e da falta de organização no armário, duzias de caixas de remédios escorrem pelas prateleiras como a água represada de um rio. – Porra!! Nada dá certo comigo! – Um frasco de comprido se abre com a queda e a única pilula escapa e circula as paredes da pia. – Droga! Este aqui não – Sua mão procura desesperadamente segurar a pedrinha milagrosa, mas devido a sua falta de concentração graças a sua febre, deixa a cair no ralo. – Porra! E agora? – Com as mãos fechadas apoiadas na pia, tal como um lutador de boxe concentrado, tenta desesperadamente achar uma saída no labirinto congestionado de sua mente. O telefone toca. Suas palpebras apertam ainda mais, formando rugas nos cantos dos olhos. O telefone toca. Aperta fortemente suas mãos ao ponto de suas unhas marcarem a carne macia da superficie da palma. O telefone toca. Abre os olhos de forma ríspida, deixando-os exageradamente arregalados e olha para cima como se tivesse rompido a lâmina de água e desperto de um afogamento. O telefone toca.- Não vou atender – O telefone toca. – Que merda! Quem é o filho da puta sem noção? – O telefone toca. ... ... ... ... ... ... finalmente silèncio. Volta vagorosamente para sala, os pés pesados arrastam-se, deita-se no sofá, olha em volta e lembra-se de que não achara o controle. Aproxima-se da tv e liga. Um pastor evangélico salta à tela.- Quem é aquele que salva! – grita à multidão de ovelhas hipnotizadas.- Jesus! Jesus! – responde o séquito.-Não há dor e nem sofrimento para aquele que acredita em nosso Senhor Jesus Cristo!- Glória! Que assim seja!- Grande coisa! – muda o canal. Agora a imagem de uma mão de unhas bem feitas aparece na tela do aparelho. – Mas que merda é essa?- Este lindo anel de topázio pode ser seu por apenas quinze vezes de 800 reais. Mas ligue agora, é a última peça!Aperta novamente o botão e ... outro canal evangélico. – Putz! Deixem espaço para os adoradores de satã. Como vai se lutar contra o inimigo se ele deixar de existir? Se o diabo morrer, quem precisará de Deus? – Desliga a televisão. O silêncio refrescante ecoa em sua mente. Não é engraçado como o silêncio possui som? Por vezes o silêncio possui um som tão alto que imaginamos que nenhum outro som vai conseguir suplanta-lo. Nosso cérebro é escravo do meio. Os sons entram sem permissão, assim como a dor. Não há como evita-la. Podemos controlar parcialmente seus efeitos, mas somente depois de ter chegado. Ela chega sem avisar e abre a porta e se instala. Nos nega até nossa vontade de viver. Talvez ela queira nos dizer que não somos eternos. Que estamos a todo momento sucubindo as intepéries da vida. Talvez seja a maneira de nosso corpo dizer adeus aos poucos, como se cada neurônio gritasse para os outros sua despedida. Nossa pele resseca, como se sugada pelo vácuo da vida, esvaindo de nosso interior, como uma bexiga que esvazia perdendo o ar que a sustentava.Mas na hora que o último resto de dor se for, na hora que último neuronio sair e apagar a luz... a dor se vai. Que droga, preciso atender o telefone.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A crônica dos monólogos bilíngües


Vem o grande literato, com seu carrão importado, pela larga e movimentada avenida. Súbito, fecha o sinal. Da calçada, o esfarrapado mendigo o enxerga.
- Carrão bunitu, todo excrementado, dotô indinherado cum certeza. Num vai mi dexá sem um trocadim, quem sabe inté uma bulacha que o fio largô.
Parado no cruzamento, o grande escritor, dramaturgo, ensaísta, jornalista e crítico literário percebe a figura andrajosa caminhando em sua direção:
- Esse é um cidadão de bom gosto. Sabe se vestir de acordo com o clima de nosso país. Ternos, gravatas, coletes... Que tortura, nesse calor! Esse indivíduo, ao contrário, domina a arte do bem trajar: sem camisa (claro, ele pode, está com o corpo de um maratonista, nem uma gordurinha sobrando). E olha as calças, têm várias aberturas para a circulação de ar! Idéia genial de algum grande estilista. E as sandálias? Uma de cada cor. Que estilo!
- Baum dia, seu dotô, disculpa di incomodá o sinhô...
-Não incomoda, concidadão, a bem da verdade, concedo-lhe congratulações pela indumentária!
O mendigo gaguejou:
- Pela minha cara?
- Seu trajar, ajustadíssimo a essa rotunda soalheira. Vejo que sua tez tem um tom trigueiro que deixaria minha consorte rubra de inveja.
O mendigo animou-se, pensando consigo: “Esse dotô é estranjero, num fala bem nossa linga”. “Mió ainda, os gringo é mais mom aberta”.
- O sinhô num sabe, num ganhei nada hoji, poca peça pa vendê, e baxô o pressu do aliminu...
O literato pensou rápido: “Vender”...O preço do alumínio... Nosso asceta aqui é do ramo de vendas. E voltando-se ao andarilho:
- Seu gerente devia instruí-lo a usar “corretagem” ou “consultoria” e evitar o termo “vender”. Um recurso semântico que exerce forte apelo coercitivo sobre o interlocutor. E sua dicção é truncada, embora me soe audível. Evite, mancebo, os tais vícios de linguagem inerentes a determinado tipo de atividade, que alguns profissionais acabam incorporando ao léxico de sua fala cotidiana. As empresas deveriam possuir tutores aptos a orientar melhor seus corretores. Quanta falta de visão!
O pobre diabo não ousou fazer qualquer comentário. O literato prosseguiu, sorridente:
- Então, varão, opera no ramo da metalurgia? Os negócios vão mal?
Por que não muda de ramo? Corretagem de imóveis, por exemplo?
- Ah, seu dotô, acorrentá os móvis pa eu num dá não. Percisa as ferramenta. Perfiro continuá na recicrage, ninguém da impregu pa homi que nem eu.
O literato sorri. O rapaz está se referindo a seu curriculum vitae. “Perfiro”! Que pronúncia peculiar para “perfil”... “Recicrage”, na certa são exemplos desses termos importados e mal pronunciados que os profissionais de marketing utilizam em profusão. Brasileiro tem preguiça de traduzir vocábulos e expressões estrangeiras e mais preguiça ainda de aprender a pronúncia correta. Acaba inventando um dialeto novo. Não é de se estranhar que este jovem não tem conseguido efetuar uma venda. Como convencer o comprador com tão pouco domínio sobre a língua? Regionalismos, má dicção, estrangeirismos...
O mendigo deslocou ligeiramente um piolho de sua morada, e arriscou:
- Intão, sinhô, será que da pa mi resovê um pobrema? To desdi manhã sem ponhá nada na boca... O dotô tem alguma coisa pa ajudá eu?
O literato pensou consigo: “Ponhar” provavelmente ele quis dizer “pomar”. Uma provável referência a suas origens interioranas. Sabia que era do interior! “Pobrema”! Bem, há indivíduos na TV que cometem esses atropelos... Mas “ajudar eu”, é um pavoroso desvio sintático. Um homem tão simpático, com um gosto refinado para se vestir, não será difícil resolver essas suas pequenas deficiências. Do porta-luvas retirou um grosso compêndio: ESTILO E TÉCNICA DO BEM FALAR. Obra genial de seu amigo Professor Cornélio Paganno. “É tudo que um bom profissional de vendas precisa para aperfeiçoar sua prosa”.
- Aqui está, meu amigo. Ponha o conteúdo disto em sua boca. Far-lhe-á muito bem.
Disse isso, aproveitou o sinal verde, avançou com sua máquina possante. Satisfeito com a boa ação.


Sentado na beira da calçada, o mendigo pensa que no país daquele homem as pessoas comem umas coisas muito estranhas. “Perfiria mais uma linguissa frita, uma coixinha... Mais mió qui nada!” Pensou isso, dobrou mais uma página, a de número 11, pôs de uma vez na boca, e mastigou lentamente.
- Com um cafezim dicia mió...
Moral da história:
Quando a palestrante no oratório da sarjeta é a fome, nem mil versos parnasianos superam a poesia concreta de um ovo colorido, no mais naturalista dos botequins.

A dança do Pirulito


adriano (cabeção) fez um improviso com panos

cicero e as antigonas




o professor cicero (matemática) recitou letras de canções antigas

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Os dois "articuladores"


Professores Cristiano e Nelson (mestres de cerimônia)

Simone on Fire







Simone (ex-aluna) fez uma performance macabra com malabarismo e fogo

Nossos convidados especiais Felipe Dylon e Seu Jorge kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

voz e violão


chikinho (quase expulso da cena!!)
KKKKKKKKKKKKKKK!!!!!!



Jessikinha (extensivo tarde).







































A dança do ventre



As meninas do extensivo nos presentearam com uma bela performance da dança do ventre (coisa de louco!!!!!!!!!!)


Um trabalho magnífico que abriu o primeiro sarau sinistro do objetivo é de autoria do Professor Chacon, e foi interpretado pelo próprio. "O Improviso do Palhaço" é um belíssimo monólogo, interpretado com maestria pelo autor.



Vida Veloz

VIDA VELOZ

Tenho vivido a divagar
A vagar devagar
A cavalgar por sobre as vagas
De minha mente
Várias vias, variados vultos
Varões e varoas por velhas vielas
Vagam a toa.
Elevo-me em versos que agora entôo
E por sobre vastas avenidas alço meu vôo
Vida veloz de vivente citadino
Sol a pino
Ventos secos do inverno
“El Nino”
Tenho vivido a desbravar veredas
E a buscar por verdes vales,
Sozinho
Vê os jovens ao longo do caminho
Sem nenhum destino
Reverberam vozes num desatino
Ouve a voz do menino
Que vaga pela praça
O resvalar das vistas
A velar sua desgraça
E enquanto a vida passa
Tenho vivido de vagar
Embora os dias voem, velozes
E veja as vilas de minha infância
Esvaecerem-se na ávida ânsia
Da veloz vida urbana
Inumana, desumana, insana...
Fria qual o metal que cerra as celas
E arma as telas em nossas belas
Edificações
Ouve a voz dos vendilhões
A vociferar aos vinte e tantos cantos da nação
A apregoar sonhos vulgares
De televisão
Os desvarios dessa vã civilização
Têm nos levado num afã
À perdição
A perda dos velhos valores
Vem avariando os sentimentos
Violência avança sobre alvos imóveis
Vicejam os vícios, vagueiam os viciados
Como cadáveres móveis
Tenho virado noites a ver paredes
Tenho virado dias a verificar tablóides
Velho mundo, rotundo, geóide
Observai os vagalhões de homens
A revender velharias,
A revirar as latas,
A vislumbrar as placas,
A encravar estacas
Enquanto vago vejo tudo,
E subindo, a divagar
Volto a voar...



Cansei de vagar
Canso de voar
Cansado estou de divagar...

Só não canso de viver

Professor Cristiano